Desculpem se volto novamente a essa coluna com mais uma matéria sobre o Boeing
707, mas além de ser um dos meus aviões preferidos, há algumas semanas
atrás um facto bastante importante envolveu um destes clássicos em
particular. Trata-se do Boeing 707-138B (s/n 17702), matrícula 9Q-CLK, que no dia 26 de janeiro passado descolou de Miami para Kinshasa, com escalas em Natal (!) e Accra.
Depois de ter chegado à Florida em agosto de 2010 para manutenção –
onde inusitadamente foi pintado com um padrão de cores imitando aquele
de um dos protótipos do Boeing 787 – o ‘CLK tomou o rumo da República
Democrática do Congo – DRC (ex-Zaire), onde opera como aeronave
presidencial do Sr. Joseph Kabila.
Além de ser um facto por si só já especial, por tratar-se de um voo
com um Boeing 707, dos quais restam em atividade pouco mais de 60
unidades, essa célula em especial merece destaque.
Trata-se, com efeito, do jato comercial mais antigo ainda em
atividade no mundo! (portanto, estamos a excluir aqui algumas unidades
de KC-135E/R, mais antigos, ainda em voo). E mais: é um dos raros 707 da
versão ‘138 dos quais foram fabricados apenas 13 exemplares, todos para
a australiana QANTAS. O ‘138 é uma versão “long range”
da série ‘120 (a primeira versão do 707) e com ele a Boeing atendeu aos
requisitos da QANTAS que necessitava de uma aeronave de longo alcance
para ligar Sidney à costa oeste dos Estados Unidos. Para tanto, a
fabricante tomou a fuselagem da versão ‘120, encurtou-a em 3,05m para
diminuir o peso vazio operacional e adicionou um tanque de combustível
na seção central da fuselagem, aumentando a capacidade total de 51 mil
para 65 mil litros. Essa foi a mais curta das versões do 707 (menor
ainda alguns centímetros do que o B720), com um comprimento total de
apenas 41m.
Mencione-se que outro ‘138B ainda a voar é o famoso N707JT, do ator John Travolta, pintado nas cores antigas da QANTAS. Entretanto, o ‘707JT é bem mais “novo” do que o 9Q-CLK, tendo sido fabricado em 1964.
Com o seu “roll out” da fábrica de Renton no dia 24 de julho de
1959 e primeiro voo em 08 de setembro daquele mesmo ano, o 9Q-CLK foi
apenas o 64º 707 da linha de produção e tem, portanto, mais de 53 anos
de atividade! Nada mal para uma aeronave pressurizada…
Registado como VH-EBG e recebendo o nome de batismo “City of Hobart”, operou pela flag carrier australiana em voos de passageiros, de outubro de 1959 até janeiro de 1968, quando foi vendido para British Eagle
Airways, que o utilizou em voos charter desde o Reino Unido para a
Europa continental e as Caraíbas. Após a liquidação da empresa, foi operar
para a Laker Airways, em configuração única de 158 passageiros. Nessas duas companhias britânicas utilizou sempre a matrícula G-AWDG.
Em 1978 o veterano foi registado N600JJ e adquirido pela Charlotte Aircraft e transformado em aeronave VIP, tendo ido voar em 1981 para o Xeique saudita Abdallah Baroom.
Em agosto de 1987 o s/n 17702 foi vendido para a Skyways Aircraft
Leasing e quatro meses depois foi registado como N707KS. Um facto
interessante é que a Skyways era de propriedade do consórcio Aviation
Management, no qual o Xeique saudita Salem Bin Ladem (irmão mais velho
de Osama Bin Ladem) tinha uma participação e era o real “dono” do avião
nessa época.
Em 1990, ainda como N707KS, o avião mudou novamente de proprietário,
agora a First City Texas Houston, que em 1992 alterou a matrícula de
forma quase “subliminar” para N707SK (apenas alterando a ordem das
últimas duas letras).
Mas a relação mais duradoura dessa “avis rara” começaria em maio de 1998 quando foi vendida para o governo da República Democrática do Congo (DRC)
e registada 9Q-CLK. As duas últimas letras eram as iniciais de Laurent
Kabila, então presidente do país, até ser assassinado em 2001, quando
foi substituído por seu filho, Joseph Kabila, até hoje no poder.
Após pouco voar em quase 10 anos, passando a maior parte do tempo num hangar em Kinshasa, o ‘CLK foi visto em Lanseria, África do Sul, em
agosto de 2007, pintado em cores marrom e creme, passando por uma
reforma do seu luxuoso interior VIP. Esse trabalho foi efetuado pela FAAircraft.
Aproveitando a oportunidade de a aeronave se encontrar na África do
Sul, um grande credor do governo congolês residente naquele país,
conseguiu uma ordem de arresto do 707 na justiça. Entretanto, em 01 de
novembro de 2007 a aeronave simplesmente descolou “sorrateiramente” de
Lanseria para Kinshasa, onde ficou a salvo da justiça sul africana e de
um provável leilão para satisfazer o crédito de cerca de US$ 20 milhões.
O ano de 2008 parece ter sido um dos de maior atividade do 9Q-CLK a
serviço do governo da DRC. Com e feito, entre alguns voos documentados
do veterano, incluem-se:
- 11-ABR-08: Levou o Presidente Joseph Kabila de Kinshasa para Lusaka, Zâmbia, para um encontro de mandatários da região, para resolver a disputa das eleições do Zimbabwe (o call sign quando o presidente está a bordo é “Congo 001”);
- 13-ABR-08: Retorna com o Presidente Kabila de Lusaka para Lubumbashi (DRC);
- 14-ABR-08: Voa de Lubumbashi para Kinshasa;
- 15-ABR-08: Voando de Kinshasa para Ilha do Sal;
- 07-AGO-08: Chega Pequim (China) com o Presidente Kabila, para a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos;
- 22-SET-08: Aterrou à noite no Aeroporto JFK em Nova Iorque, trazendo o Presidente Kabila para a Assembléia Geral da ONU.
- 06-NOV-08: Voa de Kinshasa para Nairóbi, levando Kabila para uma reunião sobre a crise humanitária na DRC.
A tripulação técnica é composta por ex-pilotos oriundos
da companhia congolesa Hewa Bora Airways, que utilizou Boeing 707 nos
anos 90 até meados dos anos 2000.
A próxima grande movimentação do ‘CLK ocorreria em agosto de 2010
quando surpreendentemente foi visto em Miami, onde viria a passar por uma
grande revisão. A estada na Flórida foi bastante demorada. Aparentemente
a falta de peças e de pagamentos pontuais por parte do governo congolês,
fez com que a manutenção programada fosse suspensa e apenas parcialmente
cumprida. Em janeiro de 2011, o avião foi visto sem motores, fora do
hangar, com cores semelhantes de um dos protótipos do 787, em curvas de
azul escuro e azul claro, com um grande “707” pintado na cauda.
Em 10 de setembro daquele ano o 9Q-CLK efetuou o
primeiro voo de experiência após mais de um ano desde sua chegada em
Miami. Aparentemente, vários problemas foram encontrados nesta saída e
a aeronave regressou ao aeroporto com o painel do engenheiro de voo
“piscando como uma árvore de natal”, no dizer de uma pessoa com acesso
ao clássico 707.
Depois de mais um ano de reparações, o s/n 17702 realizou mais três voos
de testes entre o final de 2012 e início de 2013. No primeiro, um tubo
do ar-condicionado rompeu-se e a aeronave começou a perder
pressurização. A tripulação regressou para uma aterragem de emergência em
Miami. No segundo teste, efetuado em 15 de janeiro de 2013, o sistema antiskid
do freio das rodas falhou, levando ao estouro dos pneus na aterragem. A
terceira tentativa, em 22 de janeiro, acabou prematuramente, pois um dos
motores entrou em pane e teve de ser cortado, obrigando ao regresso do 707 ao
aeroporto.
Mesmo diante de tantos problemas, a decisão foi tomada, no sentido de levar a
aeronave para Kinshasa, obtendo-se para tal uma autorização da FAA (Federal
Aviation Administration) para um único voo de ferry para a África.
Assim, no dia 26 de janeiro último, o clássico cinquentão partiu
definitivamente para sua casa, de Miami para a capital congolesa,
escalando em Natal e Accra (Gana). Veja abaixo um vídeo feito durante o
táxi para decolagem. No dia 10 de fevereiro o 9Q-CLK foi visto no pátio
de aeroporto N’djili, de Kinshasa, na área reservada às aeronaves do
governo.
Infelizmente, comenta-se que a não ser pelas cores “Dreamliner”
aplicadas ao ‘CLK em Miami, quase nenhum dos itens que deveriam ser
inspecionados ou atualizados foram realizados na aeronave e o futuro do
clássico s/n 17702, o jato comercial mais antigo em voo, parece nada
promissor…
*Parceria: Cavok Brasil - Pássaro de Ferro
Publicado originalmente no sítio Cavok/Brasil: http://www.cavok.com.br/blog/?p=62507
Publicado originalmente no sítio Cavok/Brasil: http://www.cavok.com.br/blog/?p=62507
Auto: Marcelo Magalhães
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