sábado, 4 de setembro de 2021

Notas de viagem: SANTA MARIA, dos aviões e do Cosmos…

 

Volto sempre aos Açores, vezes sem conta, e as vezes que posso, que querem? Gosto disto! Do azul do céu e do oceano, do verde das encostas, do negro das lavas, das vaquinhas, da boa mesa e … dos aviões! 

Santa Maria, onde me encontro a escrever estas linhas, e onde venho pela segunda vez, é uma ilha que conheço mal, e daí uma (a primeira) das razões do regresso a esta espécie de “peregrinação” açoriana, que faço quando posso.

Os Açores têm uma marca profunda no percurso da História da Aviação Mundial, e por isso, são sempre tema, daí a “segunda razão” do regresso... A aeronáutica. Assim sendo, esta ilha tem desde logo três locais que seriam para um Aerotranstornado como eu, razão suficiente para vir aqui de propósito. Na realidade, nos Açores não faltam aviões, em todas as ilhas, mesmo que, em algumas delas, só em doses pequeninas ou ao longe, muito lá ao longe, sulcando o éter e atravessando esta piscina gigante de água salgada, infestada de tubarões e águas-vivas.

Começo por um local que será talvez o que está carregado com uma maior carga emocional. Trata-se do Pico Alto onde, em 8 de Fevereiro de 1989, um Boeing B707-300 [reg. N7321T] da companhia charter Independent Air, colidiu com a montanha e no qual perderam a vida 144 pessoas (137 passageiros e 7 tripulantes)
Foi este o acidente aéreo mais grave da história dos Açores.
Não acrescentaria mais em descrever aqui o acidente e as suas causas, mesmo até porque está muito bem relatado em diversa webografia, e sobejamente bem recontado no livro do Francisco Cunha, “IDN 1851 – o Desastre Aéreo de Santa Maria”, uma leitura que recomendo. 
No livro, o autor descreve muito bem todo o enquadramento histórico e todos os aspectos mais técnicos da análise do acidente, levando-nos a perceber toda a sequência de eventos, a uma espécie de «cadeia de erros», que tiveram a consequência que conhecemos.
Muito importante, descreve e recorda também o notável esforço das autoridades e da população local na busca de vida por entre os destroços, nas operações de resgate dos restos mortais, para os devolver aos seus familiares, bem como das evidências do acidente, para o poder compreender.
No local, há diversas homenagens que marcam simbolicamente o sucedido, sendo a mais importante talvez o memorial concebido pelo artista plástico italiano Ferrucio Guidotti
A propósito, veio-me à memória, não o acidente em particular mas de ver na televisão, uma missão da Esquadra 501 “Bisontes”, da Força Aérea Portuguesa, confirmada por alguns amigos, missão essa que, em dois ou três dias, consistiu na pulverização com desinfectante (creolina), utilizando o sistema MAFFS[1], sobre toda a área do acidente. Confirmada também pela existência de um vídeo que regista algumas das passagens de um C-130 da FAP
  
Trabalho magnífico do artista italiano Ferruccio Guidotti, que nos inspira a um momento 
de introspecção e de homenagem por todos os que ali perderam a vida.   As flores, 
na sua base, são sinal constante da visita de familiares e amigos a este local.

 
Na estrada de terra batida que leva ao radar, na sua parte mais baixa, no local exacto onde o avião embateu, podemos encontrar diversos outros testemunhos, homenagens, nos quais vão sendo depositados pedaços diversos do avião que, sem dúvida os caminhantes ou quem ali se desloca em peregrinação encontram, por entre a densa vegetação da montanha.



 

    
Deambular por ali tentando imaginar, lembrar-me do que li, e ver os olhos avermelhados do sofrimento daqueles que arregaçaram as mangas para ajudar a devolver as vítimas aos seus familiares, um cenário dantesco que não me atrevo, nem tão pouco saberia, descrever … 

O Pico Alto é ainda o local referido de um outro acidente, ocorrido alguns anos antes, a 1 de Outubro de 1964, onde se despenhou um Piper Aztec PA23 de registo Paquistanês, tendo perdido a vida ambos os tripulantes. Desconheço a existência de algum memorial mas, admito que vi por lá um memorial na subida que me levantou "suspeitas", digamos.
Um outro acidente aéreo, anterior a estes, ocorrido a 3 de Julho de 1945, com um Douglas C-54D da USAAF (reg. 42-72680), com perda do avião e dos seus 4 ocupantes
A 24 de Março de 1947, durante um voo de entrega (ferry) com escala em Santa Maria, proveniente de Gander, despenha-se no lugar da Lapa, um Beechcraft D18 de registo egípcio SU-AED (MSN A-368), vitimando os seus dois ocupantes.


 
O outro local de referência é aquele que foi imortalizado por Eisenhower como o “porta-aviões” do Atlântico: o Aeroporto de Santa Maria. Aeroporto esse que tem uma história curiosa, plasmada em muita bibliografia e que, ouso aqui reunir dois ou três tópicos que me parecem importantes.
Desde os primeiros passos da aviação no arquipélago, Santa Maria reclamava também para si a necessidade de ter um aeródromo que servisse o arquipélago e, já agora, o Mundo. O primeiro registo da presença da aviação dá-se a 2 de Agosto de 1929, com o Graf Zepelin alemão a baixar na ilha e entregar dois sacos do correio. 
Antes disso, por aqui passou também em 1926, a primeira ligação Lisboa-Madeira-Açores-Lisboa, concretizada com o hidroavião Fokker T.III (nº25), o “Infante de Sagres”, tripulado pelos Tenentes Moreira de Campos e Neves Ferreira. 

Registo significativo seguinte, refere-se à construção da primeira pista de Santa Maria, em terra batida, utilizada pela primeira vez a 7 de Agosto de 1944, e inaugurada oficialmente a 15 de Maio de 1945, intervalo durante o qual demorou a construção e melhoramentos na sua infraestrutura inicial. Esta, construída no enquadramento da 2ª Grande Guerra, tinha como objectivo  albergar as forças americanas que iriam complementar o trabalho dos ingleses nas Lajes na protecção aos comboios navais, bem como servir de base de apoio para o trânsito de pessoas e material entre os dois continentes. À data, era a maior pista do Mundo, com 3000 metros, e a infraestrutura de três pistas foi construída com capacidade de albergar um grande movimento de aeronaves, pessoas e carga. Porém desempenhou por pouco tempo esse papel já que foi entregue ao Governo Português no ano seguinte, em 1946, altura em que as forças americanas passaram a ficar definitivamente baseadas nas Lajes. Ainda assim, foi muito importante no rescaldo da guerra e no movimento de retorno de milhares de militares americanos, tendo aqui ficado baseado o quartel general da Central Atlantic Wing, e a 1391st AAF Base Wing.
Desde então, e sobretudo após a sua certificação como aeroporto civil, ainda em Novembro de 1946, destacou-se como uma estrutura aeroportuária de elevada valia na aviação transatlântica, como escala obrigatória da travessia entre as Américas e a Europa, das mais variadas companhias de aviação, sendo sempre crescente o seu movimento até aos anos 60, período durante o qual se designa por “época dourada” de Santa Maria.
Porém a generalização da aviação a jacto de grande raio de acção, com o surgimento dos “gigantes” Boeing 707 e 747, Douglas DC-10, e Lockheed L-1011, e a necessidade de escalar Santa Maria decaiu por toda a década de 70 e 80 até aos dias de hoje.




Nos dias de hoje, e para além dos voos diários dos “Satinhas” e “Satinhas pequenos” (ler com pronuncia s.f.f.), escalam o aeroporto diversos aparelhos para apoio nas grandes distâncias, como charters, e jactos pequenos, entre outros.
A importância da ilha em termos aeronáuticos deriva também do facto de aqui se localizar o centro de controlo aéreo da Área de Informação de Voo de Santa Maria (FIR), uma de duas de responsabilidade nacional, representa uma das maiores áreas do Atlântico Norte.
Como sabem, conjugada com a FIR Lisboa, e em conjunto com a nossa Zona Económica Exclusiva, fazem parte da área total sob responsabilidade nacional, gigantesca, acrescente-se, no que concerne não só à Busca e Salvamento, como o controle das pescas, da poluição, do tráfico de pessoas e bens, sendo a Força Aérea e a Marinha Portuguesas quem tem a responsabilidade operacional sobre os ombros.


Situada ao lado da torre de controle a moderna instalação do Centro de Controlo 
Aéreo Oceânico (FIR Santa Maria).

A Região de Informação de Voo de Santa Maria (Flight Information Region, ou FIR Santa Maria), com 5 milhões de km2, é gerida a partir do Centro de Controlo Aéreo Oceânico. Processou em 2017, e em conjunto com as áreas de controle aéreo de Ponta Delgada, Horta, e Flores,  mais de 161.000 voos anuais, 166.490 em 2018, e 166.822 em 2019. Com a pandemia e a queda a pique dos voos em todo o mundo, registava no primeiro trimestre de 2020 uma quebra de mais de 50%!



o edifício doo CFAA
 
Fica em Santa Maria o Centro de Formação Aeronáutica dos Açores (CFAA), que é um estabelecimento de ensino, operado pela SATA desde 2012. Trata-se de um centro de formação para o pessoal da SATA, e não só, para o desenvolvimento e manutenção de competências do pessoal tripulante da companhia.

O terceiro apontamento de aviação, refere-se como não podia deixar de ser, à minha veia de “relicário”, o FIAT G.91R/4 nº ‘5415’, a que já aludi, nomeadamente no sentido de promover o esclarecimento sobre a sua verdadeira identidade, que é bem o nr. 5414 (c/n 91-4-0133). Este, que integra a publicação European Military Out Of Service (EMOOS), é actualmente o único “wreck&relic” da ilha, que já teve outros, nomeadamente alguns aparelhos com histórias rocambolescas ou obscuras que estiveram apreendidos ou avariados durante algum tempo no aeroporto…
De entre eles, ainda está no aeroporto o FTB-337G de registo EC-KXM.


FIAT foi restaurado recentemente por um grupo de entusiastas locais ligados ao 
Clube da ANA  que o retiraram para o hangar do aeroporto e promoveram um 
conjunto de trabalhos por forma a devolver-lhe alguma da sua velha glória, para 
que ali fique como testemunho da presença da FAP.
 
Em SMA desde 2009, foi apreendido pelas autoridades, depois de uma história rocambolesca de aterrar, 
passar “uns pacotes de farinha” para um outro avião que descolou de imediato – ambos sem qualquer 
autorização da torre para o fazer!  Este é um FTB-337 de registo EC-KXM (c/n 0073), que aparece 
referido em diversas fontes online como tendo sido anteriormente o CS-DBD, o que não é correcto. 
O CS-DBD foi um registo posterior do FTB-337G da FAP nº 13731 (c/n 0032). 


Por falar em relíquias, um dos pontos de interesse turístico de uma visita a Santa Maria, seja-se aficionado por aviões ou não é seguir o roteiro que visa contar a história do aeroporto de Santa Maria. Projecto da Associação LPAZ, inaugurado quase há dois anos, faz-nos viajar por lugares e equipamentos tão diversos como o porto de Santa Maria, o Açucareiro, os locais da primeira pista de emergência e da primeira aterragem, o bairro dos americanos, a padaria, a central eléctrica, os diferentes edifícios de serviços e apoio, hangares (ainda está um de pé!), torre de controle, quartel de bombeiros, o Bairro dos Anjos, o Bairro de Santa Bárbara, capela, espaços de cultura e lazer, o bairro da NAV, e um sem número de instalações em uso ou desactivadas do aeroporto.

A Associação LPAZ, que nasceu em 2013 e tem por objectivos contribuir para a valorização e promoção das infraestruturas aeronáuticas da Ilha de Santa Maria, colaborar com as várias entidades públicas e privadas na gestão da zona habitacional do Aeroporto de Santa Maria, bem como de outras infraestruturas com ele relacionadas, e ainda, promover e desenvolver o estudo, a preservação, a qualificação e a divulgação do património histórico e cultural relacionado com o papel da Ilha de Santa Maria na aviação no Atlântico Norte.
Espero voltar a Santa Maria para conseguir ver mais trabalho feito, como o restauro da antiga torre de controle e edifício (local mais do que adequado para o V. projecto museológico, o Projeto do Núcleo Museológico do Aeroporto de Santa Maria), os diversos Quonset Huts (porque não utilizá-los para habitação temporária como Alojamento Local?), e já agora p.f. incluam no património este FTB-337G, não o desperdicem … 
    





Há ainda, uma outra dimensão, a cosmológica, se assim se pode dizer, já que se projecta no Cosmos como uma espécie de “porta de Embarque para as estrelas”…
É verdade, existem na ilha diversas instalações e outros tantos projectos a decorrer, voltados para cima, para o exterior deste berlinde verde-azul, projectos em que Portugal está envolvido, desde há alguns anos através da Agência Espacial Europeia (ESA), e também da recentemente criada Agência Espacial Portuguesa, ou “Portugal Space”, como é também conhecida.  
Tudo isto integra o designado Teleporto de Santa Maria, mas há mais a caminho!

Foi em 2007 que foi inaugurada a base operacional da Agência Espacial Europeia (ESA), para o rastreamento de satélites e para o seguimento também do lançamento de foguetões.
Ao par das estações de rastreamento de satélites da ESA (ESA Tracking Station), da EGNOS (European Geostationary Navigation Overlay Service), a Galileo Sensor Station (European Global Navigation System GALILEO), do ERDS (European Data Relay System), da estação do Eumesat, e estação da Agência Espacial Portuguesa, existem outros projectos que tiram partido da núvem de satélites que paira por cima das nossas cabeças, como é o caso da estação de monitorização de derrames de hidrocarbonetos (CleanSeaNet), operada pela Edisoft para a EMSA, que utiliza a rede de satélites RADARSAT e SENTINEL (Programa Copernicus). A informação gerada por estes satélites e recolhida por estas antenas, permite ainda, entre outros, auxiliar na gestão da Zona Económica Exclusiva, não só na gestão de derrames mas também na detecção de outras actividades ilegais no oceano, como tráfico de droga, pessoas, o contrabando e a pesca ilegal.

Está prevista a criação de um Porto Espacial e de uma instalação de teste de motores para foguetões da ESA, sendo intenção da Agência Espacial Portuguesa fazer com que Santa Maria venha a ser ponto de paragem obrigatório do “Space RIDER”, um vaivém europeu que irá fazer experiências científicas no espaço, aproveitando a microgravidade, descolando na Guiana Francesa e aterrando aqui, no extremo Este dos Açores. Prevê-se a construção das instalações de apoio para breve, que virão por certo dar uma nova dimensão ao aeroporto de Santa Maria, estando previsto o primeiro voo do Space RIDER para 2022!

Já tinha eu fotografado em 2015 em Le Bourget o seu antecessor, o 

 
Não tem que enganar…

De um lado a “technoville” espacial do outro os problemas de encontrar erva viçosa com 
poucos gafanhotos …   quem sabe se não irá daqui nascer um novo tipo de queijo, 
o queijo de cabra de cura espacial?


Para além disto tudo, e como se não bastassem razões para aqui vir, por aqui comem-se coisas várias e até, pasme-se ou não, as tripeiríssimas francesinhas, algo que não abdico, conforme deixa adivinhar o meu promontório barrigal, onde invisto tempo e dinheiro. Lá está, outra razão para voltar a todas as ilhas dos Açores, a boa comida portuguesa! 



Rui “A-7” Ferreira
Entusiasta de Aviação

Nota – O autor não escreve segundo o actual acordo ortográfico.

Agradecimentos – António Pita, Domingos Barbosa, Francisco Cunha, Miguel Santos, Nelson Rodrigues, Paulo Martins, Vitor Afonso, e à equipe do FB do "Aeroporto de Santa Maria / LPAZ - SMA / Santa Maria Airport", Marco Gonçalves.

Notas
[1] - Recordo que o sistema MAFFS, cuja último ano de utilização foi 1996, ainda estaria operacional e as tripulações qualificadas, entretanto não foi para o Museu do Ar, foi outrossim para o lixo …


 


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